domingo, 28 de outubro de 2012

Retalhos de Renda



A tarde escurecia fazendo ressaltar os tons de dourado do sol que se despedia. Sentada num pequeno banco, ela cosia e cosia, semicerrando os olhinhos gastos pela idade. Laurinda cosia e recordava, os dedos a trabalhar e a lembrarem as texturas e toda a panóplia de sentimentos a elas associada. Recordava os dias em que ajudara a sua avó a preparar o seu vestido, pensando com alegria que chegara agora a sua de fazer o mesmo pela neta.
Laura, assim chamada por a mãe ter considerado o nome como uma versão mais moderna do de Laurinda, casava na sexta-feira. Fazia a quinta geração a seguir a tradição dos vestidos de retalhos.
Contava-se o seguinte:
Durante muito tempo, na sequência de um súbito surto de fome, toda aquela região se mantivera despojada de habitantes. A terra não produzia, o gado morria e não havia como alimentar as gentes. O resultado foi o êxodo absoluto: da memória das vidas que ali tinham criado raízes, apenas as estruturas que lhes tinham proporcionado abrigo serviam de testemunho.
Muitos anos depois, um grupo de vizinhos que vivia numa das zonas mais degradadas do litoral ali mais perto, embalaram os seus poucos pertences e partiram em busca de uma nova terra. Chegaram àquela aldeia por mero acaso e ali se instalaram, reclamando como suas as humildes propriedades deixadas para trás tantos anos antes.
Pouco a pouco foi-se formando uma pequena comunidade e, pela altura em que a avó de Laurinda ali chegou, em criança, a terra era novamente fértil e o gado desenvolvia-se. Os pais de Filomena, a avó de Laurinda, instalaram-se numa das poucas casas ainda vagas, um pouco afastada do centro. Uns dias depois de instalados, Filomena descobriu um alçapão no teto do corredor e tratou de arranjar uma escada para descobrir o que se escondia no sótão da sai casa. Além da espessa camada de pó que criava uma carpeta fofa no chão, toda a divisão se encontrava vazia com a exceção de um dos cantos, ao qual se encostavam duas arcas velhas e um pouco comidas.
Filomena ficou deliciada com os vestidos de noiva que enchiam as arcas. Havia rendas e folhos, tule e tafetá, cetim, veludo. No entanto, uma grande parte dos vestidos encontrava-se demasiado danificada para permitir qualquer salvação. Durante os meses que se seguiram Filomena e a mãe trataram de tentar salvar o máximo de tecido que conseguiram, mas apenas dois vestidos puderam ser resgatados. Não lhes encontrando utilidade, decidiram vendê-los à costureira da aldeia. Guardaram consigo, porém, uma arca de retalhos de tecido, na eventualidade de poderem usar algumas faixas ou golas com as suas próprias roupas.
Por ocasião do noivado de Filomena com o filho do padeiro da aldeia, a sua mãe lembrou-se da arca dos retalhos e, seguindo um desenho da própria Filomena, mãe e filha viram passar os dias até ao casamento entretidas a construir o vestido de noiva a partir dos tecidos guardados.
Quando o primeiro filho de Filomena casou, a sua noiva, sendo filha de um simples agricultor e não tendo como conseguir um vestido, pediu à sogra alguns dos seus retalhos, e um novo vestido foi desenhado e costurado. Deste casamento nasceu Laurinda. Quando chegou a sua vez de desposar marido, a arca já não tinha o suficiente para criar um novo modelo. Mas Laurinda, caprichosa, insistiu em desenhar o seu próprio vestido. Para as peças que lhe faltavam, tratou de, com a ajuda da mãe e da avó, desfazer os antigos vestidos. Assim se sublinhou a tradição dos vestidos de retalhos. A mãe de Laura, quis homenagear a mãe, Laurinda, usando o seu vestido, mas Laura, que herdara o espírito da avó e conhecia toda a história dos retalhos, desde pequena ansiava desenhar o seu vestido e, novamente, trazer vida a toda uma inovadora mistura dos retalhos da famosa arca.

E por isso Laurinda cosia, naquele fim de tarde. Cosia enquanto esperava a neta que tinha ido comprar umas pedrinhas para acrescentar o seu vestido, cuja costura continuaria após os dedos cansados da avó terem pousado os trapos. Juntas trabalhavam todas as tardes e todas as noites para que Laura fizesse jus ao seu esboço.
E a arca mantinha-se arrumada, no seu canto do sótão, guardando os pedaços de tecido que aguardavam a sua vez de integrarem um novo vestido.


Procura a Maravilha ;)

sábado, 6 de outubro de 2012

Uma Voz na Noite

    E subitamente  lá estava ela outra vez. A voz. Pousei o livro para escutar melhor. Estaria alguém a ouvir um CD? Ou estava mesmo a cantar? Não se ouvia qualquer música de fundo, apenas a voz. Mas uma voz forte, timbrada e ritmada, que não perdia força nem fôlego. Não reconhecia a canção. Sabia apenas que era um homem a cantar. Todas as janelas daquela parte da casa davam para um espécie de pátio interior e delas podiam ver-se as janelas dos prédios em redor, que também acediam a esse pátio. Decidi abrir a janela do quarto para ouvir melhor. Não consegui identificar de onde vinha o som. No entanto, definitivamente era um homem que cantava só para si. Pelo timbre, perguntei-me se seria africano. A voz era linda e não fraquejava. Ouvia-se água a correr, aparentemente de mais perto. Estaria o homem a tomar banho? Os sons pareciam vir de lugares distintos. Sentada no braço do sofá, deixei-me ficar a ouvir, com o olhar preso no escuro da noite e já não tentava identificar de onde vinha a voz. Apoiei a cabeça na mão, com o cotovelo no parapeito da janela. Não me conseguia impedir de sorrir. Estava a absorver todo aquele momento. Era tudo enigma e magia e sentia-me como que sob hipnose. Reconheci parte da letra e sorri mais. Não era uma música que tivesse ouvido muitas vezes, mas já a tinha ouvido. E quando ele chegou ao fim, murmurei também para mim o verso final. A água parou de correr; a voz continuou a cantar. Apenas por mais uns momentos. Fechei a janela a sorrir e, ainda a sorrir, saí do quarto. Enquanto percorria o corredor a voz foi-se esbatendo e, quando me sentei para descrever o momento que tinha acabado de viver, já se silenciara por completo.

    Procura a Maravilha ;-D