domingo, 27 de junho de 2010

Entre as Ameias - I

O dia estava quente mas o sol escondia-se atrás das nuvens. A luminosidade era estranha e ofuscante, e no entanto extremamente apelativa. Seria o dia perfeito para a reportagem fotográfica que se propusera fazer para participar num concurso nacional que decorreria dali a um mês. O local estava escolhido havia muito e faltava-lhe apenas sentir aquele formigueirozinho que lhe activava o radar de fotógrafo. Aquela foi a manhã em que surgiu.

Atou os sapatos gastos e vestiu uma velha t-shirt da Coca-Cola por cima das calças de ganga coçadas. Nada lhe dava mais prazer que trazer ao de cima esta sua faceta desleixada que em tudo contradizia o seu quotidiano rigorosamente traçado, marcado e sério. As suas sessões de fotografia permitiam-lhe escapar da realidade e davam-lhe o ânimo para nunca se fartar daquilo em que se tornara.

Era livre.

Pegou nos óculos de sol, na carteira e chaves do carro, e depositou a alça da mala das máquinas por cima do ombro.

Chegou ao castelo por volta das 12 da manhã. O calor anunciava-se de forma flagrante, conquanto apenas uns tímidos raios de sol espreitassem por entre as nuvens.

Sob este céu carregado distinguiam-se as imponentes ameias que resguardavam o que antigamente teria sido uma cidade e que, actualmente, se apresentava como uma curiosidade turística, com todos os conceitos a ela associada.

Comprou um gorduroso cachorro quente com o qual pretendia deliciar-se enquanto se encaminhava para o antigo auditório, de onde teria um panorama que lhe permitiria escolher as paisagens do seu portfolio.

Mal acabara de pisar o último degrau quando se lhe deparou o cenário mais perfeito que poderia ter escolhido, como se as personagens tivessem sido escolhidas a dedo, num casting oficial, de propósito para satisfazer os seus intentos.

Bem centrada no seu ângulo de visao, encontrava-se uma jovem, sentada de costas para si, encaixada entre duas ameias, com as pernas para o exterior da fortaleza. Uma posição um tanto vertiginosa, em seu entender.

O vento fazia esvoaçar delicadamente as curtas mangas do vestido amarelo-suave que evergava, e as fitas do enorme chapéu de palha e abas de um carmim ofuscante.

Imediatamente pegou na sua máquina e, discretamente, focou a jovem. Não gostando do plano centrado, desviou um pouco a perspectiva e deu com o perfeito par para completar a tela: um rapaz espraiava-se de encontro às muralhas, de olhar vazio e pensamento longe, numa típica postura de espera.

Enquadrou-os a ambos e fotografou-os em tons de cinza. O resultado foi divino, como que tirado de um filme de época. Quedou-se por ali nos minutos que se seguiram e seguiu o desenrolar da cena com o rolo da sua máquina. Porém, no último instante de uma das fotografias, a rapariga levantou o rosto, fixando o olhar na sua direcção. Não querendo ganhar a fama de invadir a privacidade alheia, considerou aquela como a deixa para se retirar, e seguiu para casa.

Passou o final de tarde escondido na sua câmara escura de improviso, avaliando o resultado.

Quando todas as imagens tinham sido reveladas, depositou-as na mesinha do café, ordenadas e recostou-se na poltrona, deixando a mente divagar.

O calor entorpecia-lhe os membros e a mente toldava-se-lhe entre o fumo do cigarro acabado de enrolar e do whisky que ia beberricando. Neste estado de torpor, não lhe pareceu estranho que as duas figuras ganhassem volume e vida, e sussurrassem a sua história.


"Procura a Maravilha" ;)

segunda-feira, 21 de junho de 2010

É como acordares de um sonho. De um sonho bom. É aquela sensação de te aperceberes que… acabou! Não vale a pena invocares. Não vais voltar a sentir. Podes lembrar-te das sensações… Se bem que o mais provável é que até acabes por moldá-las um pouco de encontro aos teus interesses. E sentes que não podes voltar atrás. Sentes, sobretudo, talvez, uma certa tristeza pela ilusão se ter desfeito, por te teres apercebido que foi um sonho e que por mais que o chames até ti não consegues tê-lo de volta e, em boa verdade, nunca o tiveste realmente. E sente-lo desvanecer…até que se apaga totalmente…
A única diferença é que não foi um sonho. Foi real. Existiu e tu sentiste-o. Não imaginaste as sensações, não invocas um sentimento abstracto. Esteve lá. Ele esteve lá. Amaste, riste, beijaste, choraste, tocaste, sentiste, brincaste, partilhaste, tremeste, vibraste… E ele esteve lá. E era o motivo pelo qual sentias tantas coisas e tantas coisas ao mesmo tempo. E depois acabou. E tal como um sonho bom que tentas agarrar mantendo os olhos fechados, fazes um esforço para não te desligares de tudo o que sentiste, de tudo o que te fazia sentir viva e te dava um significado à coisa mais ínfima!
Tentas agarrar-te. Mas é inevitável que a lembrança esmoreça, que o tempo passe e minimize a importância. E é natural que ao longo do dia – ao longo da vida – vás invocando as imagens, os pensamentos, as emoções… podes até sentir-te como se revivesses o momento… mas vai-se desintegrando, quase imperceptivelmente. E quando dás por ti, a própria invocação já quase não tem sentido, já não sabes porque procuras essa imagem e raramente ela te surge de forma espontânea. “É o tempo”, diz-se, “o tempo cura tudo”. Mas sentes um vazio… e tens de o preencher, mesmo que para tal procures as emoções mais fortes… Que doem. Ou então… tens um novo sonho bom…
Algumas feridas sararão mais lentamente…ou nunca… só o tempo dirá… Mas também se diz que não há como o primeiro amor. Parece-me que as feridas desse serão as mais difíceis de passar.
“O tempo cura tudo”…incluindo o vazio do fim de uma ilusão?


Dobrou a folha em quatro e pô-la no bolso das calças.
Apanhou um táxi e dirigiu-se ao local onde o vira partir. Ajoelhou-se na terra e reviveu a emoção da despedida enquanto cavava um pequeno buraco na terra e escondia debaixo dela a sua última carta.
Suspirou, secou os olhos com as costas da mão suja e ergueu a cabeça, deixando-se embalar pelos raios quentes do crepúsculo.
“Agora basta!” Sussurrou. E seguiu para a vida, sem olhar para trás.

"Procura a Maravilha"...

sexta-feira, 18 de junho de 2010

As palavras que nunca te direi....

Não, não és tu. Não nesse sentido... Não é a maneira como falas agora, não é o que dizes, nem o que fazes (sim, de certeza que não é o que fazes!)... É aquele "tu" que fazia parte do "nós", aquele "tu" que surgiu com um diferente "eu" e que era perfeito para ele...

Agora não procuro em ti esse "tu", porque já nem encaixa, nem tu agora encaixas...mas ainda assim dói, porque nos perdi aos dois e porque, ao perder-nos aos dois, perdi uma grande parte de mim, uma grande parte das minhas convicções e até mesmo da minha capacidade de amar. Perdi grande parte da minha ingenuidade e não gosto deste confronto com a realidade.

Sim, sinto-me sozinha, mas tenho medo de me aventurar... Vai ser complicado sair desta encruzilhada... Tenho medo disso, de me sentir perdida... mas do que serve dizer-to a ti?

É complicado... as memórias desvanecem-se e a verdade é que tu já não correspondes a ti... Tanto porque tu mudaste como porque a minha concepção de ti mudou... E as memórias são cada vez mais escassas...

Talvez seja melhor assim.


Anyway... "Procura a Maravilha!"

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Pergunta à Lua

A noite era de lua cheia, mas naquele lugar ermo, longe de tudo o que conhecia, a escuridão adensava-se por baixo das copas de ciprestes cerradas. De mente vazia, deixou-se vaguear, percorrendo o trilho que os seus pés escolhiam, como que separados por uma essência própria.

O silêncio era absoluto e oprimia-lhe os ouvidos e os sentidos. Seguia como sonâmbula, em busca de um poiso que sabia estar à sua espera. Escutava os grilos que clamavam para si a noite, mas não os ouvia; mirava os escassos pirilampos que ousavam quebrar o breu, mas não os via. Estava até alheia ao sincronismo das suas passadas, do seu respirar e do bater do seu coração.

Por fim, uma prega de luz atreveu-se a espreitar por entre um escassear da folhagem mais rasteira e, sem sobressalto, despertou do seu transe, abriu os ouvidos à respiração, aos batimentos, ao suspiro das folhas, ao tinir dos grilos e ao suave marulhar que lhe chegava de mais ao fundo. Toscas escadas de betão davam acesso a uma plataforma sisuda, com possibilidade de guarida a um único batel de aspecto gasto, que balançava com o dançar do rio.

Desceu devagar, sentando-se com um suspiro no último degrau, pés apoiados na plataforma. Enlaçada pela suavidade da noite, da água, da brisa, ergueu os olhos para o céu, percorreu a imensidão de estrelas – tão nítidas naquele retiro – e fixou-os na lua, naquela esfera cheia, perfeita e brilhante, que aquecia por dentro…

Porquê…? Deixou os lábios desenharem.
Porquê…? O seu olhar perdia-se na beleza da lua.

Não se deu por adormecer. Não notou o frio da madrugada, nem o orvalho da manhã. Mas quando o sol lançou sem piedade os raios fortes contra o seu corpo abraçado, acordou com a certeza de ter falado com a lua e de ter encontrado a sua resposta.

Descobre-te a ti mesma e descobres o teu propósito.


"Procura a Maravilha"

terça-feira, 8 de junho de 2010

De tirar o Sono

Começamos a chegar à fase adulta e lá se vai aquela eterna tranquilidade de criança e a bela curiosidade infantil de procurarmos familiarizar-nos com o estranho mundo que nos rodeia.
A verdade é que, por vezes, só nos apetece fechar os olhos e tapar os ouvidos, fingir que há coisas, ideias, acontecimentos que não têm lugar. A falta de resposta ou de lógica para esses eventos é extremamente assustadora. Já, por vezes tive dificuldade em adormecer por causa desses pensamentos tumultuosos, e sei que não sou a única. Até que ponto nos podemos deixar influenciar?
Aquilo que me tira o sono é pensar que não existe livre arbítrio, que somos comandados por alguma força superior, suponhamos, um geek de computadores que se diverte com um emulador de personagens. É horrível pensar que poderemos ser algo tão insubstancial como isso.
Hoje mais uma pessoa ficou sem dormir por ter lido uma notícia acerca da inversão dos pólos magnéticos - atrasada milhões de anos - que alguns cientistas dizem estar para breve (2012?)... Seríamos vaporizados da Terra, em seu entender. A minha ignorância tranquiliza-me pois não sei os efeitos que tal alteração terá nas vidas terrestres...Acho que prefiro manter-me assim... Além disso, ja foram tantos os falsos alarmes do fim do mundo, que mais parece a história do Pedro e do Lobo.
Mas compreendo que cada um tem o seu tipo de dúvidas existenciais, os seus medos, as suas angústias. E crescer passa, não só por ter este tipo de pensamentos, mas por ter a maturidade de lidar com eles e saber quando devemos simplesmente esvaziar a cabeça e dar um mergulho no mar, ou ler um livro...

Ou estudar química orgânica!!

Acima de tudo...
"Procura a Maravilha"!!!!!!

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Rótulos

Estou presa. Presa em mim. Presa aos meus pensamentos que não são verdadeiramente meus. Posso ser extremamente arrogante e quase auto-destrutiva ao dizer que sou o fruto de uma sociedade mesquinha e preconceituosa, má e intolerante. Ou então posso ser mais suave e benevolente comigo mesma e dizer que vivo com um pé na realidade e outro na utopia. Tenho uma data de ideias pré-concebidas que passei toda uma infância a ornamentar e sem as quais parece que as coisas à minha volta não funcionam. Como se tudo se devesse encaixar na perfeição nas minhas concepções, devidamente catalogado e arrumado nos seus lugares, muito organizadinho. E acabo por não me permitir entender que as pessoas são demasiado complexas e imprevisíveis para poderem ser rotuladas dessa maneira! Acabo por não me permitir a mim mesma ser complexa e imprevisível e tudo o que foge à minha concepção do normal e certo é simplesmente assustador e inadmissível E quem é mais afectada por estas questões sou eu mesma! É incrível o quão permissiva consigo ser com a maioria das pessoas, o quão compreensiva, e não o conseguir fazer para mim.
Sou a minha maior crítica e rotuladora… Preciso de uma mudança; preciso de deixar de ter medo e viver as coisas como apenas mais uma experiência, importante e recompensadora.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Pontas Soltas II


A fila para o café parecia interminável. Com um suspiro resignado, acomodou a pasta debaixo do braço e tomou a sua vez.
Os seus ouvidos foram invadidos pelo burburinho dos grupos de pessoas que se dispunham por toda a sala. Tornava impossível qualquer pensamento… o que não era inteiramente mau. Havia dias que preparava aquela apresentação, não se justificavam quaisquer acrescentos de última hora, mas ao mesmo tempo, o zurzido de fundo prevenia distracções.
Quaisquer distracções.
E no entanto, quando chegou a sua vez de tirar café, o ruído da máquina rasgou o silêncio absoluto que se impusera. Seguindo a direcção de todas as cabeças, deparou-se com uma jovem que acabara de entrar no edifício e percorria descontraidamente a sala, em direcção ao auditório. Usava uma saia bege pregueada pelos joelhos, e uma camisa branca, simples, com as mangas arregaçadas pelos cotovelos, e apoiava, nas mãos juntas, uma pasta fina de cabedal. Andava direita e confiante como se o efeito da sua presença parecesse não a atingir; mas a sua expressão era uma mistura de censura e divertimento, revelada pelo ligeiro franzir das sobrancelhas e o meio sorriso que lhe apertava os lábios rosados.
O seu inesperado alheamento, enquanto avaliava a criatura que criara toda aquela atmosfera, fê-lo esquecer-se do copo que tinha na mão entornando café sobre os sapatos, no momento em que ela atravessava a porta do auditório. Um segundo depois, o burburinho regressava, ainda mais intenso, mas não o suficiente para abafar o seu praguejar. Ainda não fizera a sua apresentação e parte da sua imagem já estava manchada. Desta feita, foi para ele que as cabeças todas se viraram e, corando um pouco, pediu desculpa.
Sentiu um toque no seu ombro, e virou-se para fitar um homem de meia-idade, de barba bem aparada e grisalha, que lhe sorria de forma simpática.
- Sabe meu caro, as aparências enganam. Não fique tão engasgado com uma mulher só porque ela é bonita… Quem frequenta estas andanças sabe que não há beleza que supere a sua loucura. Não, não se trata de uma doente mental, não faça essa cara! Mas digamos que… vive num mundo à parte, se assim se puder dizer. Uma mulher extraordinária…Podia ser argumentista de cinema!
Terminou o discurso com duas palmadas nas costas e seguiu o seu caminho.
David acabou de beber o seu café e dirigiu-se ao auditório.


"Procura a Maravilha"