sábado, 20 de abril de 2013

A Festa de Outono - II

    O telefone estava a tocar quando ela se aproximou da porta de entrada do apartamento. Apressou-se a abri-la e correu para ele, deixando a porta aberta, com as compras do lado de fora.
    - Estou?
    Era uma das suas amigas de infância, que lhe ligava muito excitada, da terra que abandonara havia já quatro anos. Aparentemente ele tinha enviado um postal aos pais informando das suas intenções de volta a Portugal por alturas da festa de Outono. A amiga queria saber se ela também tinha recebido um postal.
    Não. Não recebera nada. Mas ele e ela eram águas passadas, e tinha também algo para contar à amiga.
    - Estou noiva.
    Mas não acabara de a informar que isso eram águas passadas? Como poderia estar noiva?
    Não estava noiva dele, mas de outro. Um homem da cidade. Trabalhava na rua de uma das casas que ela limpava e haviam-se conhecido ainda quando ele estava presente. O outro servira-lhe de consolo aquando da partida e ela criara-lhe afeição. Haviam decidido casar.
    Mas quando?
    Não sabia. Mas seriam marido e mulher pela altura da festa. Sim, com certeza que iriam à terra nessa altura, e anunciariam então as boas novas.
    Quando desligou o telefone, o coração ainda parecia querer saltar-lhe do peito e sentia uma estranha fraqueza nas pernas. Dirigiu-se cambaleante para a porta de entrada e trouxe os sacos para dentro, trancando-se, de seguida, no apartamento.
    Como pudera dizer tudo aquilo? O seu plano passara simplesmente por se envolver com o outro para não sentir a falta do corpo dele. Não planeara casar. Não amava o outro. E, no entanto, dissera o que dissera. Dissera-o e, por mais assustada que isso a deixasse e por mais que se sentisse desfalecer por saber que o veria na festa do Outono, sabia que era aquilo que tinha de fazer. Tinha de casar com o outro e pavonear-se na aldeia, debaixo do nariz dele, mostrando-lhe, altiva, que passava muito bem sem ele, obrigada!

quinta-feira, 18 de abril de 2013

O pedacinho da perda

    Uma das verdades mais incontornáveis da vida é que ela acarreta perdas. Perdemos aqueles que amamos, perdemos amigos, perdemos desejos e sonhos. Por vezes apercebemo-nos que perdemos tempo ou então um sentimento ou uma crença que costumava viver em nós. Mas a maior perda de todas é aquele pedacinho nosso que se perde, no momento de uma perda. É um vazio que fica, do qual não nos apercebemos imediatamente, enquanto "choramos" por aquilo ou aquele alguém que perdemos. Ainda que a dor seja nossa, deixamos a perda dessa parte de nós mesmos para segundo plano.
   E então a vida vai passando. E com ela o tempo. E o tempo vai mitigando a dor da perda. Quando damos por nós, estamos abertos a novos momentos, novos prazeres e sentimentos, novos desafios. Pode, então, suceder que tomemos consciência de que não temos tudo o que é necessário para os enfrentar. Isto começa por nos surpreender: já vivemos situações similares e tínhamos tudo o que precisávamos. O que mudou, então? Foi tão-só esse pedacinho; essa peça essencial que perdemos numa situação de perda, sem nos termos dado conta. Pode ser apenas confiança em nós próprios ou nos outros; pode ser a capacidade de nos entregarmos; ou então a coragem para enfrentarmos os desafios que nos surgem. Pode ser a capacidade de amarmos e de nos deixarmos amar... E, então, pergunto: conseguimos recuperá-lo? Esse pedacinho nosso...?


quinta-feira, 4 de abril de 2013

A Festa de Outono - I



Sentada em frente ao espelho, escovava o cabelo quase furiosamente como se, ao escová-lo, conseguisse arrancar de si os pensamentos que insistiam em perturbá-la.
Seis anos. Seis anos de paixão ardente e, de um momento para o outro, nada. Nada a não ser aquela maldita carta que continuava a provoca-la estupidamente, de cima da colcha da cama.
Escovava o cabelo para não pensar, para não recordar todos os momentos que tinham passado juntos. Porque, sabia, nenhum deles daria alguma indicação daquele silêncio inesperado e daquela carta concisa, escrita à pressa – como de quem foge. Mas fugir de quê? Não dela, com certeza! Não quando, ainda há duas semanas, tinham renovado entre si as juras de amor, no sexto aniversário da sua união. Por ele deixara para trás os pais e os irmãos; com ele sentira-se suficientemente segura para embarcar naquela aventura de largar a sua recôndita terra natal para se embrenhar nos labirintos da grande cidade costeira. E agora ele partira. Partira e deixara-a sozinha naquele pequeno apartamento no qual haviam depositado todas as economias amealhadas.
«Parto para a Alemanha em busca de cura e paz de espírito. De nada te serve um homem aleijado e incapaz de te sustentar. Darei notícias.»
Mas não dera. Havia três semanas que partira e a única carta que ela recebera fora aquela que lhe deixara, ali, em cima da cama, antes de ela voltar do serviço. Como que lembrança contínua da traição dele, relia a carta todas as noites, quem sabe em busca de que resposta, conseguindo apenas aprofundar a ferida que se lhe abrira no peito.
Pousou a escova e, acercando-se da cama, puxou com força as cobertas para trás, deixando que a carta esvoaçasse para onde bem lhe aprouvesse. Deitou-se e esperou, em vão, que o sono lhe chegasse. Essa noite foi pior do que as anteriores.
Já perto da madrugada, virou-se novamente na cama, enrolando-se um pouco mais nos lençóis. Os acontecimentos do dia impediam-na de adormecer profundamente, o pensamento a viajar de forma incessante. Contrariando a parte de sique queria esforçar-se por dormir, obrigou-se a despertar e ajeitou as almofadas e a roupa da cama. Voltou a aninhar-se para tentar dormir e apercebeu-se de que estava a suar. Num instante, tinha atirado para o chão a camisa grossa de dormir e voltado a enroscar-se, assim despida, com exceção das calcinhas, entre os lençóis e as almofadas, apreciando a súbita frescura sobre o seu corpo nu.
Porém, logo sentiu a falta de um outro corpo abraçando o seu, aquele corpo tão familiar, tão quente e forte, que tantas noites a envolvera e que ela tantas noites explorara. Sentiu-se subitamente só e perdida, naquela cama demasiado grande para um corpo solitário. Pequenas lágrimas de raiva percorriam os tristes da sua face de menina, gotas salgadas que ela rapidamente limpou, enquanto tomava a sua decisão.
Despontavam os primeiros raios quando, com a mente resoluta, abraçou as pernas e conseguiu, enfim, adormecer.