sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Família

Para mim, a família constitui um elo alargado entre pessoas e um importante sistema de suporte. Para quem cresce no seio de uma família grande, feliz, ruidosa e compreensiva, esta torna-se o pilar de apoio a todas a vicissitudes que a vida decidir imputar. É quem torce por nós nas corridas que empreendemos, quem se alegra com as nossa vitórias e nos apoia nas derrotas; é quem tem sempre uma palavra amiga para confortar, ou um olhar sério para repreender. Acima de tudo, é quem nos ajuda a perspectivar os nossos problemas e dúvidas, e nos orienta nos bons e maus caminhos que tomamos.

Mas o que acontece a esta rede de apoio se, subitamente, as malhas são rasgadas? Como aliviar um peso que a vida decide distribuir igualmente por todos os ombros, sem, no entanto, assegurar com isto algum alívio? Como recorrer ao nosso mais importante apoio quando estamos todos tão cegos com a nossa dor que não conseguimos ver a de todos os outros que nos rodeiam?

Se o nosso mecanismo falha, como podemos erguer-nos o suficiente para retomar a malha? Como podemos fazer ver aquilo que, provavelmente, nem nós vemos? Como podemos apoiar e confortar, se não temos quem nos apoie e conforte a nós?

E, se cada um lida à sua maneira com a dor, como poderá compreender que não é a forma como a exterioriza que define a sua intensidade... Assusta-me que, nos momentos em que mais se torna necessária a entreajuda, sejam aqueles que nos tornam mais egoístas e cegos...

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Menina e Menino

    A Menina e o Menino eram inseparáveis. Moravam ao lado um do outro, e tinham crescido a ver-se crescer. Quando iam para a escola, davam as mãos e cantarolavam. Se um se esquecia do lanche, por certo o outro tinha uma maçã para lhe oferecer. Brincavam as mesmas brincadeiras, eram parceiros em todos os jogos e partilhavam todos os segredos.
    E foi neste laço de amizade familiar que foram crescendo. E com esse crescimento, vieram escolas diferentes.
    Se deixaram de se poder ver todos os dias, nem por isso deixaram de gostar um do outro como gostavam, e cada vem que o Menino via a Menina ao fundo da rua ia ajudá-la com a mala, e sempre que podiam lanchavam juntos, debaixo do alpendre de uma das suas casas.
    Mas então as amigas da Menina começaram a dizer-lhe que aquilo era amor. E a Menina acreditou. Se todos concordavam, deviam ter razão. E mais do que as conversas com limonada, começou a querer os seus lábios açucarados.
    Só que os amigos do Menino não o tinham informado do mesmo modo, e mais do que as conversas com limonada, o Menino começou a desejar a companhia de caras bonitas.
Foi com surpresa e com desgosto que a Menina se viu ser assim trocada, sem aviso nem razão aparente, por qualquer outra com uns olhos mais bonitos, mas menos cumplicidade com o seu Menino.
     E como não soube dizer-lhe o que lhe ia na alma – e este foi o seu primeiro segredo – resignou-se com uma retirada para os bastidores de uma história a que já não pertencia.
    Quando os seus olhos voltaram a encontrar-se, foi com esforço que tentaram agarrar-se ao que eram. Mas sem saberem como, já nada era como antes, nem Menino, nem Menina, nem o mundo que tinham construído juntos.
    E, com amor ou sem amor, perderam a amizade de uma vida.

    Procura a Maravilha...

domingo, 3 de outubro de 2010

Areias, o Camelo

«Hum...o quê? Ai...que dor de cabeça!». Abriu um olho, «Bolas, já é dia de novo!». Voltou a fechar o olho, inspirando lentamente o ar húmido e freso da alvorada.

«Hum, lá está aquele aos gritos! Já vai! Já vai... Bolas...». Abriu, desta feita, os dois olhos. espreguiçando-se enquanto focava a vista através da claridade penetrante. Ergueu-se, lentamente. «As minhas costas...au!»

Pé ante pé, aproximou-se do resto do grupo, onde os outros haviam já iniciado o repasto. Um olhar de esguelha fê-lo aperceber-se daquela "cobra" ameaçadora, pronta a saltar-lhe para o flanco se não adiantasse o passo. Foi o que fez. Pancada não é a melhor forma de começar o dia. «Qualquer um deles...Que quase podiam ser o mesmo, tal é a diversidade!», pensou amargamente.

Depois de - vagamente - alimentado, seguiu para a parada do equipamento: as correias e correntes, a boqueira, os suportes metálicos quase impossíveis de transportar e responsáveis por aquelas dores crónicas e silenciosamente suportadas.

A sua mente voou.

O sol erguia-se, agora, com toda a solenidade, por trás daquela colina adiante. A vida agitava-se. Os raios de sol aqueciam; os passos dos restantes elementos do cáfila ecoavam em uníssono sobre as areias escuras, ordenados de acordo com as vozes que se levantavam, provenientes dos atiçadores de "cobras"; as aves iniciavam o seu vôo, com um distinto restolhar de asas. Inspirou lentamente e uma pancada seca fê-lo iniciar a marcha, concentrando-se na regularidade dos passos. Pois de que vale queixar-se? Imediatamente aqueles olhos pequeninos se contraem e a "cobra" ataca.

Resignação. Diziam-lhe ser uma bela palavra para aprender, fizar e...apreciar? «Hum...resignação. E paciência...». E esperança. «Sim, esperança. Não é assim tão difícil consegui-la. Não quando, apesar de toda a tortura física, dia após dia, se erguem a toda a volta dunas escuras do tamanho de montanhas». Embora o trabalho inclua apenas um trilho definido, pisado e repisado, que segredos se encontram para lá das colinas? «Quantos outros trilho não haverá a toda a volta? Quantas mais colinas para transpor? Quantos mistérios?»

Uma vontade súbita de fugir assomou-lhe ao fundo da garganta. Um desejo intenso de ganhar asas, como os pássaros, e largar tudo, sem impedimentos, sem olhar para trás.

«E porque não? A vida espera-me lá fora, mais intensa que esta rotina de todos os dias, do temor físico, das ordens incompreensíveis!» O seu espírito agitava-se e gritava, enquanto se acomodava na areia à espera das primeiras cargas. «Um dia serei livre de percorrer todos esses trilhos, todo esse espaço que se ergue à minha volta, sem correntes nem "cobras", nem cáfila. Até lá tenho a minha resignação e paciência. Até lá tenho os meus sonhos.»

- Mamã, mamã! Vamos andar de camelo! Olha mamã! Estou em cima do Areias! Anda Areias! Mais depressa.

Pelos direitos dos animais.

Procura a Maravilha.