A tarde escurecia fazendo ressaltar os tons de
dourado do sol que se despedia. Sentada num pequeno banco, ela cosia e cosia,
semicerrando os olhinhos gastos pela idade. Laurinda cosia e recordava, os
dedos a trabalhar e a lembrarem as texturas e toda a panóplia de sentimentos a
elas associada. Recordava os dias em que ajudara a sua avó a preparar o seu
vestido, pensando com alegria que chegara agora a sua de fazer o mesmo pela
neta.
Laura, assim chamada por a mãe ter considerado o
nome como uma versão mais moderna do de Laurinda, casava na sexta-feira. Fazia
a quinta geração a seguir a tradição dos vestidos de retalhos.
Contava-se o seguinte:
Durante muito tempo, na sequência de um súbito
surto de fome, toda aquela região se mantivera despojada de habitantes. A terra
não produzia, o gado morria e não havia como alimentar as gentes. O resultado
foi o êxodo absoluto: da memória das vidas que ali tinham criado raízes, apenas
as estruturas que lhes tinham proporcionado abrigo serviam de testemunho.
Muitos anos depois, um grupo de vizinhos que vivia
numa das zonas mais degradadas do litoral ali mais perto, embalaram os seus
poucos pertences e partiram em busca de uma nova terra. Chegaram àquela aldeia
por mero acaso e ali se instalaram, reclamando como suas as humildes
propriedades deixadas para trás tantos anos antes.
Pouco a pouco foi-se formando uma pequena
comunidade e, pela altura em que a avó de Laurinda ali chegou, em criança, a
terra era novamente fértil e o gado desenvolvia-se. Os pais de Filomena, a avó
de Laurinda, instalaram-se numa das poucas casas ainda vagas, um pouco afastada
do centro. Uns dias depois de instalados, Filomena descobriu um alçapão no teto
do corredor e tratou de arranjar uma escada para descobrir o que se escondia no
sótão da sai casa. Além da espessa camada de pó que criava uma carpeta fofa no
chão, toda a divisão se encontrava vazia com a exceção de um dos cantos, ao
qual se encostavam duas arcas velhas e um pouco comidas.
Filomena ficou deliciada com os vestidos de noiva
que enchiam as arcas. Havia rendas e folhos, tule e tafetá, cetim, veludo. No
entanto, uma grande parte dos vestidos encontrava-se demasiado danificada para
permitir qualquer salvação. Durante os meses que se seguiram Filomena e a mãe
trataram de tentar salvar o máximo de tecido que conseguiram, mas apenas dois
vestidos puderam ser resgatados. Não lhes encontrando utilidade, decidiram vendê-los
à costureira da aldeia. Guardaram consigo, porém, uma arca de retalhos de
tecido, na eventualidade de poderem usar algumas faixas ou golas com as suas
próprias roupas.
Por ocasião do noivado de Filomena com o filho do
padeiro da aldeia, a sua mãe lembrou-se da arca dos retalhos e, seguindo um
desenho da própria Filomena, mãe e filha viram passar os dias até ao casamento
entretidas a construir o vestido de noiva a partir dos tecidos guardados.
Quando o primeiro filho de Filomena casou, a sua
noiva, sendo filha de um simples agricultor e não tendo como conseguir um
vestido, pediu à sogra alguns dos seus retalhos, e um novo vestido foi
desenhado e costurado. Deste casamento nasceu Laurinda. Quando chegou a sua vez
de desposar marido, a arca já não tinha o suficiente para criar um novo modelo.
Mas Laurinda, caprichosa, insistiu em desenhar o seu próprio vestido. Para as
peças que lhe faltavam, tratou de, com a ajuda da mãe e da avó, desfazer os
antigos vestidos. Assim se sublinhou a tradição dos vestidos de retalhos. A mãe
de Laura, quis homenagear a mãe, Laurinda, usando o seu vestido, mas Laura, que
herdara o espírito da avó e conhecia toda a história dos retalhos, desde
pequena ansiava desenhar o seu vestido e, novamente, trazer vida a toda uma
inovadora mistura dos retalhos da famosa arca.
E por isso Laurinda cosia, naquele fim de tarde. Cosia
enquanto esperava a neta que tinha ido comprar umas pedrinhas para acrescentar
o seu vestido, cuja costura continuaria após os dedos cansados da avó terem
pousado os trapos. Juntas trabalhavam todas as tardes e todas as noites para
que Laura fizesse jus ao seu esboço.
E a arca mantinha-se arrumada, no seu canto do
sótão, guardando os pedaços de tecido que aguardavam a sua vez de integrarem um
novo vestido.
Procura a Maravilha ;)