terça-feira, 21 de maio de 2013

A Festa de Outono - IV



    O dia estava quente. Muito mais quente do que estivera em toda a semana e ela sentia as gotas de suor a escorrer-lhe pelas costas e pelas coxas enquanto seguiam viagem no pequeno carro de aluguer. Ao seu lado, o outro ia conduzindo tranquilamente, com uma mão no volante, o outro cotovelo apoiado na janela e uma cigarrilha na boca. Não se apercebia do tumulto que a agitava. As últimas semanas tinham sido tão turbulentas para ela, e ele chegara sempre tão tarde e tão embirrento, que não haviam conversado sobre nada relacionado com a viagem. Na verdade, não haviam falado sobre nada, a não ser o jantar; e havia muita coisa que deveria ter sido falada.
    Ela sabia que não teria um casamento feliz. Mas apercebera-se que também não estava preparada para se sentir tão solitária. Todos os dias saía antes dele, e quando voltava, ajeitava a casa e preparava o jantar, sempre a horas da vinda dele. Quando ele a procurava de noite, era solícita.
    Na verdade, apenas se sentia sozinha, sem âncora, sem um amor, um amigo com quem poder desabafar, falar de como se sentia relativamente àquela viagem. Parecia que todos os fantasmas haviam decidido voltar nos dias que a antecederam e sob todas as formas possíveis. Quando ia na rua, parecia-lhe que todos os rostos morenos à distância eram o dele; que ele decidira vê-la antes da festa da terra, para poderem conversar tranquilamente, dizer o que ficara por dizer, até atirar acusações um ao outro, culpando-se mutuamente pelo que acontecera, a partida dele, o casamento dela, exigindo desculpas, mas tendo já perdoado, só por se encontrarem frente a frente. Ah, tantas vezes os passos que ecoavam na entrada dos prédios que lavava lhe haviam parecido os seus, decididos, resolutos a arrancarem-lhe uma explicação; como imaginou o olhar magoado dele, perscrutando-lhe o rosto, procurando os sinais de amor que ansiava que ela ainda lhe tivesse e que, nem com muito custo ela conseguiria esconder. Sonhava assim, acordada, atormentada pelos passos, pela lembrança da sua cara, do seu cheiro, das suas mãos.
    Mas era outra mão que, naquele momento, lhe acariciava a coxa, a descoberto para aliviar um pouco o calor. Mais uma vez, como de todas as outras nesses dias que antecederam a malfadada viagem, os sonhos que sonhava acordada davam lugar à realidade. Agarrou-lhe a mão, num gesto que poderia ser encarado como carinhoso, mas que era apenas uma fuga, enquanto levava a outra ao ventre.
    Não era a primeira vez que se encontrava naquela posição, a mão esquerda agarrando o seu homem e a direita no ventre. E, no entanto, não poderia ser mais distinta: aquele homem era seu no papel e perante Deus, mas não no seu coração; da outra vez, balbuciara, entre o medo e a excitação, a possibilidade de carregar uma criança; agora não conseguia pronunciar as suas certezas sobre a vida que se gerava dentro de si. Sabia que aquela indisposição se devia a mais do que o calor e os solavancos da estrada; mas não conseguia falar. Ainda não.

terça-feira, 14 de maio de 2013

A Festa de Outono - III

    Ela não saberia dizer se já conseguira dormir alguma coisa ou se se mantivera sempre semi-consciente da chuva lá fora, a fustigar impiedosamente a janela, e da respiração do outro a seu lado. A bem dizer deveria começar pensar nele como o seu novo "ele".... estavam casados, afinal. Mas não conseguia. Não era ele... era o outro... E ela sabia que nada haveria de mudar isso; não se casara por amor mas por vingança e, talvez um pouco, segurança. A segurança de ter um homem a quem pudesse chamar seu e que a poderia proteger, física e financeiramente.
    A família não compreendia aquele casamento; achara-o apressado e sem fundamento. E quando avistaram o noivo, ela viu claramente as sombras que lhes haviam passado pelos olhos, enquanto a expressão se cerrava em reprimenda.
    Ela compreendia, claro. Vendo-o ai deitado, a seu lado, semi-despido e apenas com a breve luz dos relâmpagos a iluminar o seu corpo tatuado, quase não parecia um homem. Para quem vivera toda a vida numa aldeia recatada do interior, os seus escrúpulos e os preconceitos ditavam quase toda a sua forma de ser e viver. E ela já tinha tido uma boa dose de anos na cidade. Por isso, sim, compreendia a reação deles. Mas isso trazia-lhe uma certa satisfação. Não se importava com o falatório e a noção de rebeldia sabia-lhe bem. Aparecer com o outro na Festa de Outono seria um choque para todos... e principalmente para ele.
    Garantira o silêncio da família para poder causar o caos.

sábado, 20 de abril de 2013

A Festa de Outono - II

    O telefone estava a tocar quando ela se aproximou da porta de entrada do apartamento. Apressou-se a abri-la e correu para ele, deixando a porta aberta, com as compras do lado de fora.
    - Estou?
    Era uma das suas amigas de infância, que lhe ligava muito excitada, da terra que abandonara havia já quatro anos. Aparentemente ele tinha enviado um postal aos pais informando das suas intenções de volta a Portugal por alturas da festa de Outono. A amiga queria saber se ela também tinha recebido um postal.
    Não. Não recebera nada. Mas ele e ela eram águas passadas, e tinha também algo para contar à amiga.
    - Estou noiva.
    Mas não acabara de a informar que isso eram águas passadas? Como poderia estar noiva?
    Não estava noiva dele, mas de outro. Um homem da cidade. Trabalhava na rua de uma das casas que ela limpava e haviam-se conhecido ainda quando ele estava presente. O outro servira-lhe de consolo aquando da partida e ela criara-lhe afeição. Haviam decidido casar.
    Mas quando?
    Não sabia. Mas seriam marido e mulher pela altura da festa. Sim, com certeza que iriam à terra nessa altura, e anunciariam então as boas novas.
    Quando desligou o telefone, o coração ainda parecia querer saltar-lhe do peito e sentia uma estranha fraqueza nas pernas. Dirigiu-se cambaleante para a porta de entrada e trouxe os sacos para dentro, trancando-se, de seguida, no apartamento.
    Como pudera dizer tudo aquilo? O seu plano passara simplesmente por se envolver com o outro para não sentir a falta do corpo dele. Não planeara casar. Não amava o outro. E, no entanto, dissera o que dissera. Dissera-o e, por mais assustada que isso a deixasse e por mais que se sentisse desfalecer por saber que o veria na festa do Outono, sabia que era aquilo que tinha de fazer. Tinha de casar com o outro e pavonear-se na aldeia, debaixo do nariz dele, mostrando-lhe, altiva, que passava muito bem sem ele, obrigada!

quinta-feira, 18 de abril de 2013

O pedacinho da perda

    Uma das verdades mais incontornáveis da vida é que ela acarreta perdas. Perdemos aqueles que amamos, perdemos amigos, perdemos desejos e sonhos. Por vezes apercebemo-nos que perdemos tempo ou então um sentimento ou uma crença que costumava viver em nós. Mas a maior perda de todas é aquele pedacinho nosso que se perde, no momento de uma perda. É um vazio que fica, do qual não nos apercebemos imediatamente, enquanto "choramos" por aquilo ou aquele alguém que perdemos. Ainda que a dor seja nossa, deixamos a perda dessa parte de nós mesmos para segundo plano.
   E então a vida vai passando. E com ela o tempo. E o tempo vai mitigando a dor da perda. Quando damos por nós, estamos abertos a novos momentos, novos prazeres e sentimentos, novos desafios. Pode, então, suceder que tomemos consciência de que não temos tudo o que é necessário para os enfrentar. Isto começa por nos surpreender: já vivemos situações similares e tínhamos tudo o que precisávamos. O que mudou, então? Foi tão-só esse pedacinho; essa peça essencial que perdemos numa situação de perda, sem nos termos dado conta. Pode ser apenas confiança em nós próprios ou nos outros; pode ser a capacidade de nos entregarmos; ou então a coragem para enfrentarmos os desafios que nos surgem. Pode ser a capacidade de amarmos e de nos deixarmos amar... E, então, pergunto: conseguimos recuperá-lo? Esse pedacinho nosso...?


quinta-feira, 4 de abril de 2013

A Festa de Outono - I



Sentada em frente ao espelho, escovava o cabelo quase furiosamente como se, ao escová-lo, conseguisse arrancar de si os pensamentos que insistiam em perturbá-la.
Seis anos. Seis anos de paixão ardente e, de um momento para o outro, nada. Nada a não ser aquela maldita carta que continuava a provoca-la estupidamente, de cima da colcha da cama.
Escovava o cabelo para não pensar, para não recordar todos os momentos que tinham passado juntos. Porque, sabia, nenhum deles daria alguma indicação daquele silêncio inesperado e daquela carta concisa, escrita à pressa – como de quem foge. Mas fugir de quê? Não dela, com certeza! Não quando, ainda há duas semanas, tinham renovado entre si as juras de amor, no sexto aniversário da sua união. Por ele deixara para trás os pais e os irmãos; com ele sentira-se suficientemente segura para embarcar naquela aventura de largar a sua recôndita terra natal para se embrenhar nos labirintos da grande cidade costeira. E agora ele partira. Partira e deixara-a sozinha naquele pequeno apartamento no qual haviam depositado todas as economias amealhadas.
«Parto para a Alemanha em busca de cura e paz de espírito. De nada te serve um homem aleijado e incapaz de te sustentar. Darei notícias.»
Mas não dera. Havia três semanas que partira e a única carta que ela recebera fora aquela que lhe deixara, ali, em cima da cama, antes de ela voltar do serviço. Como que lembrança contínua da traição dele, relia a carta todas as noites, quem sabe em busca de que resposta, conseguindo apenas aprofundar a ferida que se lhe abrira no peito.
Pousou a escova e, acercando-se da cama, puxou com força as cobertas para trás, deixando que a carta esvoaçasse para onde bem lhe aprouvesse. Deitou-se e esperou, em vão, que o sono lhe chegasse. Essa noite foi pior do que as anteriores.
Já perto da madrugada, virou-se novamente na cama, enrolando-se um pouco mais nos lençóis. Os acontecimentos do dia impediam-na de adormecer profundamente, o pensamento a viajar de forma incessante. Contrariando a parte de sique queria esforçar-se por dormir, obrigou-se a despertar e ajeitou as almofadas e a roupa da cama. Voltou a aninhar-se para tentar dormir e apercebeu-se de que estava a suar. Num instante, tinha atirado para o chão a camisa grossa de dormir e voltado a enroscar-se, assim despida, com exceção das calcinhas, entre os lençóis e as almofadas, apreciando a súbita frescura sobre o seu corpo nu.
Porém, logo sentiu a falta de um outro corpo abraçando o seu, aquele corpo tão familiar, tão quente e forte, que tantas noites a envolvera e que ela tantas noites explorara. Sentiu-se subitamente só e perdida, naquela cama demasiado grande para um corpo solitário. Pequenas lágrimas de raiva percorriam os tristes da sua face de menina, gotas salgadas que ela rapidamente limpou, enquanto tomava a sua decisão.
Despontavam os primeiros raios quando, com a mente resoluta, abraçou as pernas e conseguiu, enfim, adormecer.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

The kid in the Train car

Tears filled up my eyes
As he entered the train car
With a Christmas song
Following on his back

I couldn't look at him
I couldn't help him
And I just felt hollow

His lips were moving
His hand holding a paper cup
Straight ahead his chest

He couldn't look at us, too
Eyes empty
But his lips were moving
And he was mumbling
The lyrics to the song that followed him
And his arm was stretched
With an empty paper cup
Pleading to be filled.
Pleading for my help.


quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Cinzento

   Por vezes deparamo-nos com dias negros. Dias em que o sol não brilha no céu nem mesmo dentro de nós. Dias em que o cinzento do céu torna obscuros os nossos pensamentos. Dias em que, por mais que tentemos, não conseguimos que os fantasmas que tão bem trancados se tinham mantido até ali voltem a sossegar. 
   É um mal geral mas nem por isso facilita a sua aceitação. São aquelas alturas em que os nossos problemas parecem maiores do que os problemas de todos os demais mortais que nos rodeiam, mesmo que tenhamos perfeita consciência que há bem pior por aí.
   Nesses dias tudo o que pedimos é um pouco paz de espírito, um pouco de paz do mundo que nos rodeia, e, eventualmente, uma cama quentinha para nos escondermos. E que esse(s) dia(s) passe(m)...